Diário dos sonhos diurnos na transição dos séculos
Os desenhos de Rui Paiva, um autor do final do século XX e início do seguinte, desencadeiam em nós, observadores deles tão afastados mas habituados a tantos e tantos espectáculos, uma pluralidade de sentimentos contraditórios: estranheza e familiaridade, reconhecimento imediato e vontade de reflexão.
A sua simplicidade, que parece evidente, é, por isso mesmo, desconcertante no contexto em que se apresenta; a sua profusão que aparece infinita, é, por isso mesmo, excessiva num tempo que já era de repetições e serialização.
Multiplicados por centenas de folhas soltas de todos os tipos e por dezenas de cadernos de desvairados tamanhos, cores, gramagens e texturas de papel os desenhos de Rui Paiva crescem, saem das pastas que os prendem, escorregam do pano da pequena mesa de jogo para os bancos chineses e para as cadeiras forradas, soltam-se aos esticões das espirais dos cadernos deixando a esvoaçar pequenos fragmentos de papel, espalham-se nos tapetes pelo chão, desejam subir pelas paredes carregadas de pinturas antigas, fixam-se nos tectos de estuque fugindo aos livros empoeirados que, nas estantes, os olham lúbricos…
Quando finalmente encontram uma longa parede branca e se acalmam,
quando param, quando se reagrupam, esses desenhos, formam pequenas manchas expectantes, alinham-se uns ao pé dos outros, sussurram pequenas histórias sem nexos claros, como quem representa discretos teatros sem guião.
Olhamos para eles e eles para nós, aproximamo-nos com cautela, não vão eles fugir de novo, e mostramo-nos dispostos a perceber o que, de tão longe, nos querem dizer, o que há tanto tempo têm para nos mostrar.
Pegamos num, viramo-lo, fazemos uma pilha com imagens que julgamos sequenciais, mas mal voltamos as costas eles mudam de sítio, boicotam as arrumações, procuram a sua própria lógica, troçam de nós…